quarta-feira, novembro 02, 2016

Culto aos "santos de cemitério" chama a atenção no Dia de Finados


Devoção popular é traço marcante na região do Vale do Paraíba

A região metropolitana do Vale do Paraíba abriga um parque industrial diversificado, possui uma atividade comercial diversificada, reúne prestadores de serviços nas mais diversas áreas e tem ampla produção agropecuária.

Além da economia pujante, o Vale do Paraíba é marcado por uma cultura fervilhante, também chamada de Cultura Caipira, marcada por lendas, costumes antigos e, sobretudo, pela religiosidade popular.

A professora do Instituto Básico de Humanidades e pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas de Práxis Contemporâneas da Universidade de Taubaté (Unitau), Cristiane Moreira Cobra, define a religiosidade da população valeparaibana como plural. “É formada historicamente a partir de tradições lusas, africanas e indígenas”, justifica.

No Vale do Paraíba, a fé manifesta-se sob várias formas e uma das mais comuns é o culto aos santos populares, que não foram oficializados pela Igreja Católica Apostólica Romana.


Conforme Cristiane, a devoção popular na região é realmente rica. Uma das práticas mais recorrentes é visitar túmulos de padres, crianças, mulheres e até andarilhos. Os fiéis atribuem muitas graças a essas pessoas.

O culto a esses “santos” faz parte do dia a dia da população, mas se intensifica em períodos como o Dia de Finados.

É nesta época do ano que muitas pessoas vão aos cemitérios para visitar os túmulos de pessoas que foram consideradas santas em vida e que continuam intercedendo pelo povo após a morte.

Na cidade de Cunha, Sá Mariinha atrai as atenções dos fiéis. “Era uma senhora negra, ‘rezadeira’, que é objeto de devoção também por décadas”, explica Cristiane.

No local onde ela morou, hoje existe uma bica considerada santa e um centro de fé que recebe romarias com frequência.

Taubaté também é um município rico em devoções de cemitério. No cemitério do Belém, um dos túmulos mais visitados é o da menina Danielle, que recebe doces, chupetas, presentes, balas e outras oferendas constantemente.

Em São José dos Campos, o túmulo do padre salesiano Rodolfo Komorek, de origem polonesa, recebe grande número de visitantes. O religioso, que viveu na cidade entre 1940 e 1949, é considerado santo pelos moradores.

Padre Rodolfo sofreu com a tuberculose e, mesmo desenganado, não deixou de assistir os doentes e mais necessitados. Foi daí que nasceu a fama de santidade.

Até o final da década de 1990, o corpo de padre Rodolfo estava no cemitério que leva o mesmo nome do religioso. Depois, houve a transferência para a paróquia Sagrada Família.

De acordo com a Congregação Salesiana, há pelo menos sete mil graças alcançadas pela intercessão do sacerdote polonês. São pessoas que obtiveram curas de doenças, tiveram filhos que se libertaram das drogas, do álcool, dentre outras graças.

Outro religioso venerado pelos fiéis na região é o missionário redentorista padre Vítor Coelho de Almeida, que viveu em Aparecida. Padre Vítor é considerado santo pelos romeiros, que atribuem muitas graças a ele.

Na Rodovia dos Tropeiros, entre Cachoeira Paulista e Silveiras, está localizado o Santuário de Santa Cabeça, que recebe muitas visitas. “É um local de peregrinação, por conta de uma cabeça de uma imagem de Nossa Senhora ali encontrada e que se tornou objeto de devoção popular ao longo de décadas”, conta a professora Cristiane Cobra. A devoção baseia-se no culto a uma cabeça de uma imagem da Virgem Maria, que possivelmente foi encontrada por tropeiros no rio Tietê.

Como surgem essas devoções?
Cristiane Cobra, que além de professora é filósofa, mestre em Ciência da Religião e doutoranda em Ciências Sociais, salienta que essas devoções surgem mediante histórias de dor e sofrimento, martírios, mortes violentas por acidente ou decorrentes da maldade humana.”

De acordo com a estudiosa, há versões diversas sobre a vida desses santos de cemitério e as razões de suas mortes, já que a chamada rede de devoção constitui-se através da tradição oral.

Segundo Cristiane, existem três matrizes que explicam a influência do desenvolvimento da religiosidade popular na região do Vale. “A matriz colonizadora veio com jesuítas e bandeirantes, que trouxeram em sua bagagem seus hábitos cristãos, seus costumes, sua moral, sua viola, sua música, seus rituais, vestimentas, idioma etc.”, ressalta.

A matriz indígena também permanece na cultura regional. A professora cita a diversidade de povos, rituais, crenças, costumes, danças, ritmos marcados nos pés, múltiplos idiomas e práticas alimentares, a relação de equilíbrio e respeito com os ciclos da natureza, a moralidade e as práticas sociais festivas tradicionais como fatores mais preponderantes.

E, por último, a matriz africana, caracterizada pela força de povos diversos, trazidos violentamente para compor nosso país, trouxe hábitos alimentares, instrumentos musicais, idiomas, práticas rituais, danças, crenças, histórias e costumes que, sincreticamente, permaneceram e marcam a pluralidade da Cultura Popular Caipira e da religiosidade regional.

A cientista social e folclorista Angela Savastano, de São José dos Campos, acredita que, em função de aspectos históricos, como a colonização, a presença de povos vindos da Europa e África, e a presença das manifestações indígenas, o Vale possui um traço muito rico e diversificado.


Segundo Angela, essa devoção desencadeia um comportamento bastante particular, que é a visita ao local onde o corpo do “santo” está enterrado e o depósito de flores e outras oferendas.
“Começam ali os rituais, também espontâneos, que o próprio homem cria, para dizer que esteve ali rezando por aquela pessoa santa, recebendo graças e provando isso”, explica.

Na avaliação de Cristiane, os santos oficiais inicialmente dependiam da avaliação hierárquica do Vaticano, que verificava a vida exemplar dos candidatos à santidade. “Porém, no decorrer da história e com o desenvolvimento científico, a Igreja passou também a considerar e avaliar cientificamente a credibilidade dos possíveis milagres”, justifica.

Só que, para quem crê, os santos não oficiais podem ter a mesma força daqueles já oficializados. “Importam mais a identificação e a fé do povo”, salienta.
A posição oficial da Igreja Católica em relação a essas devoções é de acolhimento e respeito. “Independentemente de serem reconhecidas ou não, há um profundo respeito”, explica mestre em Ciências da Religião e doutor em Sociologia, padre José Carlos Pereira.

Segundo ele, o tema foi tratado no Documento de Aparecida, fruto da Conferência do Conselho Espiscopal da América Latina e Caribe, em 2007. No texto, os bispos latino-americanos afirmam que é preciso respeitar as manifestações populares que estão dentro das paróquias e Igrejas.

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